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sábado, 2 de novembro de 2013

A medicalização do HUMANO

Faz alguns dias, eu levei minha pequena ao médico. Consulta de rotina, sem maiores incidentes ou preocupações, mas uma coisa me deixou intrigada. Minha filha está em uma idade muito ativa. Dando seus primeiros passinhos, ainda não anda sozinha mas já anda se apoiando em tudo. Então, ficar parada, para ela, é um problema. Como qualquer criança de onze meses, ela não para um minuto, nem para comer.

Acho tudo isso muito normal e saudável, afinal, ela está em uma idade de descobertas e a curiosidade está super aguçada. O que me chamou atenção foi o seguinte fato:
a médica foi examiná-la e ela não parava quieta, então, o pai começou a fazer umas “brincadeirinhas” que, no lugar de acalma-la, deixaram-na mais eufórica. Aí eu brinquei com a médica: “viu só porque ela não para, puxou o pai!”. Então, a médica me disse, mais ou menos, isso: “a criança não pode ser assim agitada, é pior para ela. Se não ela vai sofrer quando for para a escola”.

Aquilo me soou muito estranho. Mas, com toda aquela coisa de vestir e acalmar a criança, não pude refletir direito na hora. Porém, o comentário não me saiu da cabeça. Fiquei pensando comigo “porque que minha filha pode sofrer na escola? por ser agitada?” Trabalhei como professora de pequenos por muito tempo e, até onde eu sei, criança é agitada mesmo.

Como na vida da gente, as coisas tendem a se encaixar (é só estar pronta para perceber), uns dois dias depois, caiu na minha mão um texto que me deixou boquiaberta. É um texto publicado pela bióloga e mãe Ligia Moreiras Sena, autora do Blog Cientista que Virou Mãe. Recomendo esse texto a todos que se interessam pela educação, escolarização e medicalização de crianças. Trata-se de um texto longo, baseado em uma publicação do New York Times intitulada “Estudantes pobres nos Estados Unidos tentam melhorar notas com remédio para déficit de atenção”. Entre outros assuntos, Ligia reflete sobre os caminhos que a atual sociedade está tomando no intuito de enquadrar as crianças em um sistema sabidamente deficitário: a escola. Em outras palavras, a criança vai “mal nos estudos”? Não atende aos “padrões”? É “mal criada”? Então, vamos “tratar” dessa criança inadequada. Vamos medica-la para que ela possa se encaixar nos modelos pré estabelecidos e se adequar a um formato escolar que se auto intitula ineficiente, mas impossível de alterar. Desse modo, não sendo possível arrumar o sistema, “arruma-se” a criança.

Bem, voltando a minha pequena realidade e ao comentário feito pela pediatra, percebi o que me incomodava na fala da médica. Por trás do seu comentário, reside um julgamento de valor que divide as crianças em normais e não normais. E o pior: o que motiva essa divisão são as nossas próprias expectativas. Construímos imagens do que queremos para nós e para nossos filhos. Queremos que eles sejam normais, não queremos que eles sofram, queremos que eles sejam bons alunos, que tenham boas notas, que sejam comportados. Idealizamos comportamentos e atitudes que, nem sempre, encaixam-se à realidade e à personalidade de nossos pequenos e encaramos isso como um “desvio”.

Muitas vezes, esse tipo de posicionamento leva à busca pela ajuda na medicina. Então, para acalmar uma criança agitada, dá o remédio X. Criança ansiosa? Remédio Y? Criança agressiva? Com problemas de concentração? Com problemas de aprendizagem?... Enfim, para todo e qualquer desvio comportamental, há uma receitinha milagrosa que vai ajudar nossos pequenos a atingirem o que a sociedade exige.

Será que não existem medidas alternativas para a medicalização? Esportes? Atividades artísticas? Brincadeiras? Atenção da família? Será que tudo se resolve na base da ritalina (isso para citar a mais popular)?

Eu, como professora de escolas particulares, cansei de receber, no começo do ano um perfil da turma, no qual eram descritos os alunos “problemáticos”, que tinham déficits e que, por não conseguirem acompanhar a turma ou atrapalhar demais, tomavam tais remédios para poder concentrar-se e tudo mais. Não sou especialista da área, mas a quantidade de crianças diagnosticadas com problemas e que toma medicação chama a atenção de qualquer um que se importa um pouco com os pequenos. A impressão que se tem é que ter algum tipo de distúrbio, transtorno, desvio neuropsicológico seja mais a regra do que a exceção.

Acredito que nos esquecemos de que as crianças , assim como os adultos, têm sua própria personalidade. Algumas são mais agitadas, mais calmas, mais tímidas, mais extrovertidas, mais quietas, mais falantes. Elas são normais? Elas se encaixam nos padrões? Devíamos parar de transformar características pessoais em patologias. Devíamos preocupar-nos menos com padrões de normalidade e mais com transmissão de valores. O que importa mesmo é que uma criança saiba respeitar o próximo, que ela conheça seu lugar no mundo sem desrespeitar o espaço alheio. É isso que idealizo para minha filha.

Acredito que o comentário da pediatra não tivesse a pretensão de rotular a minha pequena Alice. Eu, inclusive, gosto da médica, como já comentei aqui, ela me ajudou em uma fase muito difícil. O que me deixou triste foi perceber o entendimento de mundo por trás do comentário. E o pior é constatar que esse modo de entender o mundo é compartilhado por muitas outras pessoas que vivem em busca de um ideal, de um padrão que, geralmente, é inatingível. Não quero isso para minha filha. Quero que sua felicidade não dependa unicamente de um boletim escolar baseado em um sistema precário em muitos sentidos. A escola, definitivamente, não cumpre todos os requisitos necessários para uma formação plena e de qualidade.

Cabe à família perceber o que determinados comportamentos infantis querem dizer. Há outras medidas muito mais afetivas, amorosas e respeitosas que podemos tomar com nossas crianças. A medicalização deveria ser a última das últimas alternativas. Quando já se tentou de tudo. Pena que, muitas vezes, nossos doutores não pensem assim. Nem os pais parem para refletir um pouco antes de seguir uma receita médica sem maiores questionamentos.

Ansiedade, medo, tristeza, dor, frustração. Tudo isso minha filha vai sentir. Eu também sinto. Somos transtornados, então? Temos desvios de comportamento? Não, o fato é que somos humanos e não todos nos encaixamos na mesma forma.

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